Inspirações

Desbravando Horizontes

Desbravando Horizonte

Eu estava muito feliz. Minha mãe havia comprado a tal geladeira que faltava em nossa casa. Os tempos eram muito difíceis e nem sempre podíamos ter tudo o que queríamos.

Todos estávamos ansiosos por aquele eletrodoméstico que, certamente, nos auxiliaria muito. A cidade em que vivíamos era muito quente. Depois que instalaram a geladeira, fizemos uma pequena reunião e nos inteiramos do seu uso. Eu estava muito feliz.  Aos 16 anos de idade, já morava numa casa que tinha geladeira e televisão.

É sempre assim. Ninguém esquece a emoções que vive, sejam pequenas ou grandes.

Hoje, praticamente todas as casas possuem muitos bens. Naquela época, não era assim. Tudo era novidade, tudo era caro e não havia os financiamentos longos que existem hoje. Mamãe teve que trabalhar muito para adquirir o dinheiro. Era costureira e ficava horas e horas naquela máquina fazendo roupas para embelezar pessoas. Quando fiz 15 anos, ela me deu de presente o mais belo vestido que já havia feito. Vesti-me e saí como quem busca o castelo nos bosques encantados. À noite, teve bolo e velas e também presença dos amigos, poucos, mas amigos de que eu muito gostava. Tomamos sucos, sorvetes comemos bolo, doces e uma torta deliciosa com a qual Dona Arminda me presenteou.  Até dancei a valsa com um velho tio, alquebrado, quase morrendo, que caminhou duas léguas para abraçar me e, finalmente, presentear-me com sua velha Bíblia. Ele me prometera desde que eu fiz três anos, ir lá quando ficava olhando para aquele livro com olhos de cobiça.

Vida simples. Vida feliz! Tinha mamãe, meu tio Bastos, um irmão adotivo e ainda a senhora Dalva, que morava conosco. Era uma sessentona muito engraçada. Contava suas peripécias de menina travessa e também contava suas desditas matrimoniais. E me dizia sempre que não me casasse. Casamento, para ela, é uma loteria e nunca premia ninguém. Meu pai já tinha ido morar no reino invisível. Eu estava com 1 ano e meio e ele não suportou uma picada de cobra extremamente venenosa. Diziam que era o mais belo homem daquele lugar. Minha mãe confirmava e a senhora Dalva costumava olhar de lado e dar uma piscadela de olhos, confirmando.

Bem, vamos ao que mais interessa. Certa noite, acordei assustada e muito molhada de suor. Tinha tido um sonho premonitório, como vim a saber depois. Levantei-me e fui até a cozinha. Abri a geladeira e retirei uma jarra que continha suco. Ingerir aquele líquido quase que não só gole. Depois, me sentei numa poltrona velha, que ficava num canto da sala de jantar. Não tinha coragem de voltar para a cama, e o relógio marcava apenas 2h:30 da madrugada. Não queria acordar ninguém. O medo era minha companhia naquela solitária sala. Mamãe costurava até tarde e, naquela noite, resolveu deitar-se mais cedo. Não tinha coragem para nada, para levantar dali e voltar para cama. De buscar a Bíblia e ler alguns versículos, de pegar o bastidor e bordar alguma coisa ou até mesmo de olhar o retrato do Reinaldo, meu amor secreto, que só meu diário e meu coração sabiam. Estava estática e lívida. Não queria gritar e nem chorar. Tremia um pouco e antevia os acontecimentos. Fiquei com receio de dormir e voltar a sonhar. Existem sonhos recorrentes que incomodam muito. Fiquei ali, marcando com os pés o compasso do relógio que, às madrugada, são sombrios e amedrontam. O marcador do tempo era lembrança de um avô e fora rico. Aquele carrilhão tinha histórias que eu não desejava saber. Seu pêndulo enorme ia de um lado para o outro, insistindo em conversar comigo. Quando batia as horas, eu me arrepiava de medo.  Eram sentenças que me davam vertigens.

Depois que o relógio bateu 5 horas, comecei a madornar. Estava exausta. Minha respiração era descompassada e o suco fora todo sorvido por mim naquela madrugada  intérmina.

Mamãe me acordou pouco depois das 7h:30. Estava assustada com minha presença ali na poltrona sozinha e desprotegida naquela sala. Tentou falar comigo. Meu sono era muito. Abraçou-me e me recolocou de volta na cama . Meio-dia. O relógio marcou, compassado, as doze badaladas. Acordei. Lembrei-me do sonho. Fiquei um pouco mais tentando me preparar para encarar a todos e contar-lhes minha epopeia de menina solitária na madrugada. enfim, levantei fui direto para o banho. Meu corpo exigia .

Todos me olhavam naquela mesa do almoço. Queriam explicações. Com certeza, a notícia se espalhara na casa e Dona Dalva, meu irmão de 9 anos e mamãe queriam saber o que acontecera comigo. Olhei-os com vagar. Não era justo dizer-lhes a verdade. Mentir também não. Calculei bem as palavras e, por fim, decidi por fazer uma apologia ao sonhos primaveris de uma menina de 16 anos que enfrenta, sozinha, os rigores da madrugada, quando os lobos uivam e os ventos sopram nervosos e intrépido tão somente para sentir como é a madrugada enquanto todos dormem. Tudo dá muito medo, falei-lhes. Não sei se colou. O fato é que me pediram para não repetir, pois causava apreensão em todos. Notei que mamãe e Dona Dalva não acreditaram muito nas minhas palavras. Não me importei. O dia transcorreu nada anormal.  Andava de um lado para o outro sem ter o que fazer ou falar. Decidi lavar todas as louças da cristaleira. Depois, arrumei as gavetas do meu guarda-roupa, mais tarde, varri todo terreiro. Já era noite quando inventei de preparar o feijão para a próxima cozinhada.

Minha pele era morena e meus cabelos pretos perpassavam os ombros como brisas a roçar suavemente meu pescoço. Tinha pouco mais de um metro e sessenta, e meus olhos grandes e negros davam-me  vivacidade. Adorava ser eu mesmo. Amava meu corpo, minhas roupas, meus prazeres quase ainda infantil, meu sonhos de ser esposa e mãe e até minhas esperas enquanto crescia. Gostava de ler a Bíblia. Não gostava de ir à igreja. Sempre que ia era só para ver o Reinaldo, que nem ligava para mim. Porém, a esperança não acabava. Sabia que, um dia, ele me veria. Valeriana o havia conquistado. Era bailarina de um circo que passou pela cidade. Ela ficou e queria ficar com ele para sempre. Reinaldo a cortejava. Era um homem e, aos homens, aqueles direitos eram dados. Eu era  apenas menina de família, responsável e destinada ao casamento .

Dez horas da noite, li  um versículo do Velho Testamento, fiz uma breve oração e me deitei. Adormeci com rapidez. Uma hora depois, acordei suarenta e quase gritando. De novo, o sonho surgiu. Quis levantar e voltar para mesma poltrona e viver a mesma noite. Lembrei-me das preocupações de mamãe. Desta vez, teria de ficar no quarto. A casa era grande.  Cada um tinha seu quarto. Tampei os ouvidos com algodão para não ouvir as batidas do relógio. Contudo, ouvi batidas dentro do quarto. Elas vinham das portas do guarda-roupas, das duas amplas venezianas e da porta do quarto. Respirei com profundidade. O momento era meu, pertencia-me. Fosse o que fosse, deveria encarar com mínimo de dignidade pessoal tudo aquilo. Não foi fácil. De quinze  em quinze minutos, as portas rangiam, o abajur sacudia, o velho sinete que guardava numa gaveta fazia ressoar seu bronze. Abri a Bíblia e Jesus confirmava: ” Em verdade, em verdade vos digo, haverá tempos em que …”

Estava muito assustada. Não sabia se contava ou não à minha mãe aqueles fatos estranhos e estavam acontecendo comigo. Minha mãe era muito católica. Certamente, me levaria ao padre e este ao bispo e quem sabe ao cardeal e até ao papa. Eu seria exorcizada e excomungada, escorraçada feito cão sem dono. Com certeza, o senhor Satanás me queria como esposa. Isso eu antevia nas palavras dos clérigos, com todo o respeito que devo a eles e pelo que fazem de bom pelas pessoas que os buscam. De forma que achei melhor me calar. Noites e mais noites vive intensas apreensões. Houve uma em que comecei a ver vultos, depois a ouvir vozes, impropérios, cobranças. E eu, atônita, não entendia nada.

– O que querem de mim?

Silêncio. As vozes cessaram, os vultos também sumiram, e o sons e calaram. Naquela noite, adormeci como quem não desejava mais acordar. O sol da manhã beijou minhas faces com alguns de seus raios dourados e pareciam dizer-me:

– Princesa, acorda. Precisamos de você!

Caminhei por uma longa estrada que levava a velho Poço da Juventude. Sim, ali todos se renovam. O ruído do riacho, os sons magníficos da natureza, os raios do sol entrecortados pelas folhas que balançavam com carícias convidavam-nos a visitar o paraíso. Sentei-me na pedra do velho pensador e me coloquei à disposição das ideias, vagueantes ou não. Alguém começou a conversar comigo. A voz não era de fora, era de dentro:

– O que pretende na vida?
– Muito pouco. Apenas o trivial.
– Não se cansou ainda do trivial?
– Não sei o que está além dele.
– Sabe o que se esconde depois do Horizonte?
– Nem imagino.
– Outro horizonte e, depois, outro e outro…
– Não posso ultrapassar a linha do horizonte. Sou menina e sou criança que sonha.

– Todos somos meninos e crianças que sonham. Só deixaremos de sonhar no dia em que vencermos as linhas do horizonte. Então, seremos outros, vivenciando o real. Sonhos são bons ao seu tempo. Cansamos de sonhar. Cansamos dos devaneios. Cansamos das esperas.

Insistir para que aquela voz continuasse a falar. Contudo, ela se calou. Fiquei ali tempo possível a uma virgem. Não demoraria, e os pescadores iriam surgir e eles costumavam pescar com impiedade. Coisas de crianças inconsequentes.  Retornei para casa. Agora, queria que a noite chegasse e que tudo retornasse ao meu quarto. Queria desbravar aqueles horizontes que surgiam nas trevas ou nas claridades das noites. Passei um dia delicioso. Dona Dalva fez seus biscoitinhos de nata e mamãe, a sopinha de canjica com pedaços de carne. Meu irmão contou uma linda história que ouvira na aula.

Preparei-me para a epopeia da noite e ela veio. Deitei-me e aguardei, com ansiedade, meus visitantes noturnos. Era tudo silêncio, da forma como eles gostavam. Um som se fez. Fiquei atenta. Não era nada além de um inseto que desejava uma gota do meu sangue. Outras e mais outras noites aguardei, com impaciência minhas ilustres visitas e ela não apareciam. Cheguei mesmo a chamar por ela, a desejar suas presenças e seus ruídos. Nada! Absolutamente nada!

Depois do incêndio e estando a salvo todas as pessoas, olhei para minha primeira noite. Sim, eu havia visto aquele incêndio. Com cuidado conseguir deslocar para o quarto de fora a máquina de costura da minha mãe. Naquela noite do incêndio, ela costurava sozinha e se salvou. A geladeira se foi, a televisão também. Dona Dalva havia levado meu irmão para um passeio na casa de uns parentes por minha sugestão. Eu estava aprendendo um bordado novo na casa de conhecida professora daquela arte. De forma que todos nos salvamos, pois no sonho, a folhinha marcava dia 30. Então, sem assustar ninguém, consegui que todos saíssem de casa .

Sim, uma oportunidade nova descortinou se para mim. Eu era médium. Mesmo num lugar escondido de todos, mesmo numa cidadezinha do interior poderia exercer minhas premonições, antecipar acontecimentos e ajudar, orientando. Cada vez que eu fazia, novos horizontes surgiam. Fiquei velhinha. Reinaldo não veio. Vieram amigos espirituais que embalaram minha vida e deram a ela um sentido novo e dinâmico. Ainda hoje falam de mim. Falam da dona Esmeralda que sabia enxergar o futuro e eu só estava desbravando Horizontes!

Autor: Guaraci de Lima Silveira
Livro: Histórias Mediúnicas
Editora: Mythos Book

Maria Palmira Minholi Dias

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  • Nosso amigo Guaraci Lima Silveira, nos presenteou com um belo conto. Siga o exemplo dele, e compartilhe conosco seus textos!

  • o texto do seareiro Guaraci, guarda verdades, muito antigas, quando as pessoas ainda desconheciam o Espiritismo.

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Maria Palmira Minholi Dias

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